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Indústria musical

Indústria musical

Capivarock já falou em outras colunas sobre os álbuns memoráveis e citou o disco Thriller de Michael Jackson como o álbum mais vendido da história da música. O ano era 1982. Chuva de prêmios Grammy, inúmeros singles lançados e cópias vendidas igual água. Esta era uma época em que o artista compunha e lançava seus álbuns com um intervalo pequeno – alguns até lançavam dois álbuns por ano, outros lançavam um álbum anualmente; lançar a cada dois anos já era algo raro que normalmente poderia ser justificado devido a uma longa turnê de divulgação. Em termos financeiros, o artista lançava um disco já contando com o dinheiro das vendas para gerar receita antes mesmo de começar a excursionar, logo seu faturamento aumentava razoavelmente dependendo da sua popularidade. O consumo de música do grande público era através da compra dos discos de vinil, fitas cassete, estações de rádio, MTV e musicais na TV. Poucos anos depois, a música começou a ser consumida pelos Compact Discs, ou simplesmente os CD’s, que revolucionaram pela qualidade do som e principalmente pelo espaço físico ocupado. Nota da coluna¹: para evitar polêmicas, Capivarock não entrará no mérito de qual mídia tem maior fidelidade sonora, se era o CD ou o vinil. Perdeu-se a graça de ver os contextos de lindas capas desenhadas como obras de arte num folheto diminuto e quase necessitar uma lupa para enxergar os detalhes num encarte do CD, mas no início da era da tecnologia digital não se pode negar que era algo revolucionário. E caro. Mas nada que tivesse influenciado nas vendas dos álbuns dos artistas pois o consumo de música física era habitual, logo os CD’s se popularizaram e os vinis caíram em desuso.

Apresentando o incrível Compact Disc (1982)

Mencionamos poucas linhas acima as palavras que determinarão o restante desta coluna: tecnologia digital. Outra palavra que também determinará as próximas linhas é pirataria. Na segunda metade da década de 90, com o advento dos CD’s graváveis e regraváveis ainda que fossem caros, pessoas mais abastadas adquiriam computadores com gravadores de CD e copiavam seus CD’s favoritos da mesma forma que se utilizavam gravadores double-deck para a cópia de fitas cassete. Adendo importante: os vinis já estavam extintos nesta época, as grandes gravadoras não investiam mais neste formato. Voltando ao assunto, a coisa começou a ficar fora de controle quando o primeiro grande vilão da indústria musical surgiu e mudou o consumo de música para sempre: os arquivos digitais de músicas. O processo para criar um arquivo era relativamente simples: baixar na internet um software para “ripar” (tradução livre do termo Rip, em inglês) o CD, ou seja, extrair as músicas contidas em um CD original e convertê-las para um formato que pudesse ser lido por programas de execução de áudio nos computadores. Havia o formato WAV (Waveform Audio File Format, arquivo de áudio da Microsoft e IBM) que possuía boa qualidade mas o tamanho era enorme, até que surgiu a solução para este problema: o formato MP3, acrônimo para a codificação de áudio digital MPEG 1/MPEG 2 – Audio Layer 3. Com tamanho lógico aproximadamente 10 vezes menor que o arquivo WAV e praticamente mantendo a mesma qualidade, esta tecnologia mudou o paradigma de como se ouvir música. Nota da coluna²: há diferenças sonoras que são sutis e identificadas por uma minoria, além do que a origem da música extraída é diretamente responsável pela qualidade da mesma. Num período em que computadores pessoais se popularizavam se tornando um eletrodoméstico, este equipamento passou a ser praticamente o principal meio de se ouvir música. Com o aumento da abrangência da internet nos lares (quando a banda larga era privilégio para poucos e ricos), um divisor de águas da história da indústria da música surgiu: Napster.

Napster foi criado pelos desenvolvedores de software Shawn Fanning, Sean Parker e John Fanning em 1999 para ser utilizado como uma ferramenta de compartilhamento de arquivos P2P (peer-to-peer, ponto-a-ponto em tradução livre) e com isso a troca de arquivos digitais ficou desenfreada. O processo era simples: obtinha-se um CD original, ripava-se em arquivos MP3, acessava-se a internet, o Napster percorria o disco rígido do computador em busca dos arquivos com formato de áudio e os mesmos eram disponibilizados por qualquer pessoa que usasse este software, bastando fazer uma busca com qualquer nome de música ou artista. Claro que isto era rudimentar, pois as conexões de internet em sua grande maioria à época eram discadas e instáveis e o Napster não tinha uma inteligência que restaurava o download do ponto de pausa numa eventual queda de conexão, por exemplo. Mas isso era o que menos importava, os internautas se entusiasmaram de tal forma que a coisa ficou incontrolável. E claro, a indústria da música teve que se reinventar e o modus operandi dos artistas também. Muita gente do mundo da música apoiou esta ideia, porém um dos famosos casos de protestos contra este compartilhamento de arquivos foi do Metallica. A banda entrou na justiça alegando vazamento de um novo single ainda a ser lançado (da música “I Disappear”, parte da trilha sonora do filme Missão Impossível 2) e revelando uma lista com nomes dos usuários que haviam compartilhado o arquivo desta música. A Associação da Indústria de Gravação da América, conhecida nos Estados Unidos como RIAA (Recording Industry Association of America), que é o órgão responsável pela certificação de vendagens de álbuns, também entrou com processo contra o Napster alegando infração de direitos autorais e assim selando seu inevitável destino: o fim. Porém o estrago já estava feito. Milhares de softwares surgiram fazendo o mesmo que o Napster e até melhor, pois possibilitaram a restauração do download do ponto de interrupção, troca de outros formatos de arquivo, download de softwares comerciais e filmes completos, o que também abalou a indústria cinematográfica.

Metallica – “I Disappear”

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Paródia da MTV com Lars Ulrich sobre o Napster (legendas em inglês disponíveis)

 

O século XXI chega com um viés ainda mais tecnológico, onde logo surgiram os dispositivos portáteis para se carregar música: os famosos MP3 Players. Cada vez mais inclinados à miniaturização, os consumidores da música começaram a abandonar as mini-bolachas brilhantes e convergir praticamente na totalidade para a música digital. Pendrives viraram os CD’s do presente, porém a internet voltou a interceder nos passos da indústria musical e iniciou um dos principais meios de consumo de música dos dias de hoje: streaming. Ferramentas como YouTube, Spotify, Deezer, Apple Music, Soundcloud e inúmeras outras ancoraram a tendência dos anos 2010. Computadores praticamente fazem parte do passado e os smartphones praticamente dominaram o mercado, levando a internet na palma da mão de cada pessoa – no caso da música, no par de orelhas. As possibilidades que estas ferramentas de streaming fornecem são de uma praticidade similar às engenhocas em desenhos antigos dos Jetsons, pois permitem que você consiga fazer download de álbuns inteiros ou músicas aleatórias. Alguém aqui ainda lembra o que é um CD?!? Mas como no mundo capitalista ninguém joga para perder, não pense que as gravadoras não encontraram uma readaptação para faturar em cima do streaming. Nem um feto é tão ingênuo.

Após uma retrospectiva de como nos últimos anos a indústria da música mudou, analisemos outra coisa extremamente importante: a estratégia. Jovens como Greg Ginn (guitarrista do Black Flag), Brett Gurewitz (guitarrista do Bad Religion) e Ian MacKaye (vocalista do Minor Threat/guitarrista do Fugazi) tomaram para si o conceito do Do It Yourself, o nosso “Faça você mesmo” em bom português, e resolveram investir em seus próprios trabalhos. A SST Records de Ginn surgiu nos anos 60 inicialmente como um comércio de equipamentos eletrônicos aos seus 12 anos e em 1978 utilizou o mesmo nome para seu selo, lançando o próprio Black Flag e outros símbolos de uma geração indie como Hüsker Dü, Descendents, Minutemen e o multiplatinado Soundgarden. Gurewitz gravou o primeiro EP do Bad Religion em 1981 distribuindo por seu selo denominado Epitaph Records, nome inspirado numa música do King Crimson. Seu status de independente entrou em cheque quando lançou em 1994 o álbum Smash do Offspring, que vendeu 11 milhões de cópias e é o álbum independente mais vendido da história da música (citado na coluna “Riffs” de Capivarock), tornando a Epitaph como um dos principais selos independentes em termos comerciais. Além do Bad Religion, nomes de sucesso como Pennywise, Millencolin, Rancid, L7, NOFX, Propagandhi e Bring Me The Horizon fazem ou fizeram parte do roster do selo. MacKaye e Jeff Nelson fundaram o selo Dischord Records para lançar sua banda The Teen Idles em 1980 em Washington DC e futuramente passaram por ele as bandas Dag Nasty, Fugazi, Scream (de um baterista “pouco conhecido” chamado Dave Grohl) e o grande representante do hardcore de Washington, o Minor Threat.

Bad Religion TV Appearance (1980)

 

Minor Threat Live at the 9:30 Club (1983)

https://youtu.be/JFZcGUChoXI

 

Black Flag – “White Minority”/”Depression” (1979)

 

Pegando carona novamente no DeLorean de Marty McFly e voltando aos dias de hoje, percebemos que o conceito atual já era algo vislumbrado há quase 40 atrás, quando os CD’s talvez fossem apenas um projeto em estudo. Artistas já sabem (ou deveriam saber) há alguns anos que suas receitas vêm principalmente de shows e merchandise, os álbuns são apenas registros de sua obra. Se o artista não dispõe mais daquela grana quase que garantida da venda de álbuns – que fatalmente os faria economizar algumas milhas voadas – é preciso se adaptar ou até mesmo se reinventar. Uma das soluções de alguns artistas consagrados foi adquirir o controle total de suas obras, ou seja, criaram seus próprios selos musicais sendo responsáveis pela sua própria distribuição. Uma pausa: essa seria uma tendência nova, uma reinvenção? Negativo! É só subir umas linhas e ver os casos de Ginn-Gurewitz-MacKaye… o trabalho de mídia de um artista é muito difícil de ser feito e em algumas vertentes da música é mais ainda. Analisemos como exemplo o circuito independente carioca que fui atuante por muitos anos (e de certa forma ainda sou): o apoio é difícil, o trabalho é multiplicado à enésima potência, é preciso correr atrás para fazer acontecer. É a velha pergunta: você deixaria um burro faminto cuidar do seu pasto para que ele sempre fique verde? Difícil, né… mas o amor pela música de alguns ainda é notório e faz com que as bandas, ainda que com dificuldades, resistam – umas com mais afinco, outras com bem menos. E como se manter ativo para o público que é cada vez mais escasso? “Quem não é visto não é lembrado” é um mantra no mundo da música da era digital. Se o artista não agraciar, cativar e mimar literalmente seu público oferecendo constantemente conteúdo, seja ele em qualquer rede social ou plataforma de streaming, pode ligar para a Rio Pax e parcelar no cartão de crédito sua cova artística.

Prometi a mim mesmo que não a mencionaria aqui na coluna, mas é inevitável… risos… falemos de Anitta. Ela mesmo, o atual maior fenômeno musical e comercial do país. Nas entrelinhas, um produtaço. Você deve estar se perguntando: “coluna de Rock falando de Anitta?”… sim, falemos dela porque é um ótimo exemplo a ser analisado. Não que ela seja a pioneira, mas está mostrando à muita gente do Rock e outros segmentos da música como fazer. Com uma fanbase enorme e consolidada, ela passará a todo mês lançar uma música segundo informações divulgadas em suas redes sociais. Várias publicações diárias faz com que ela se mantenha ativa pro público gerando conteúdo novo, mantém informações da carreira atualizadas, gera interesse e engajamento e o resultado disso? Shows, shows e mais shows. A fórmula de lançar o disco e sair em turnê virou receita de nossos avós, principalmente para um público que infelizmente vem se fossilizando como o de Rock. Aliás vocês lembram da polêmica do Metallica aqui na coluna com o Napster? Pois é… o que eles fizeram? Compraram todo seu catálogo de sua antiga gravadora, a cada dia que passa lançam novos itens de merchandise (os colecionadores piram), gravam todos os shows ao vivo e vendem como bootleg realizando inclusive uma mixagem tão boa que até corrigiu um erro bisonho do Lars Ulrich de um show deles que eu assisti…risos… ou seja, eles geram receita por serem donos na totalidade do próprio conteúdo. A banda Pearl Jam também utiliza este artifício dos bootlegs há muitos anos. Conselho se fosse bom não era dado como diz o dito popular, mas não custa lembrar ao músico independente que almeja o mainstream que se juntar a uma gravadora pode ser uma escravidão sem lei Áurea. Fazer acontecer sozinho quando se engatinha e ter total controle de sua própria obra é uma grande vantagem, os exemplos acima mostram que os medalhões da música voltaram à fórmula do be-a-bá dos seus inícios de carreira. Mas é claro que depende de como se legaliza a relação e, meus amigos, não se enganem: NINGUÉM joga pra perder e nessa disputa o mais forte SEMPRE vence. Não preciso desenhar, né? 🙂

 

Anitta – “Bang”

 

Inúmeros artistas se aplicam às ações e acontecimentos relatados nesta coluna mas citamos apenas alguns que temos um embasamento para ilustrar melhor. A coluna não tem intenção de “ensinar” como o artista deve agir e o que fazer em sua carreira, mas na vida não há nada melhor do que aprender com os cases de sucesso e analisar outras possibilidades – enfim, prospectar as tendências para que seu trabalho não estacione e caia num oblívio e em seguida se torne indiferente e irrelevante, sentimentos piores que a morte para um artista. Não existe o certo: existe o sincero, existe o esforço, existe a tentativa, existe o TRABALHO. Viva DA música e não DE música! 😉

Por Fellipe Madureira

 

Na vitrola: Fugazi – “Waiting Room”

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2 comentários

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Eli

Como eu aprendo lendo seus textos! Parabéns por ir de Metallica à Anitta. Precisamos mesmo disto: enxergar o todo sem “pré”- conceito.

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Anderson Firmino

O Calipso deu a dica há uns poucos anos atrás. Respeito quem mete a mão e faz acontecer. A cena rock carioca é muito complexa e sem união e trabalho essas boas bandas não sairão dos porões do underground carioca. O underground é bom para quem não tem pretensões.

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